Capítulo 1: Você já se emocionou diante de um paciente?
Queridos e queridas vamos começar nossa Série “Minha Prática: TTE em Pauta” falando sobre um tema muito delicado e que revela a nossa humanidade, pessoas e agentes do cuidado que somos. Assim é preciso refletir se é possível demonstrarmos emoções e sentimentos diante de nossos pacientes. Esse assunto é muito sensível, porque se tornou um tabu e muitas vezes alvo de críticas quando um profissional médico ou terapeuta demonstra emoções diante de um paciente.
Para iniciarmos, gostaria de compartilhar com vocês o meu entendimento de que a posição de terapeuta, de médico e de cuidador das várias áreas, deve ser sentida como um verdadeiro privilégio. Tal lugar de fala e ação, nos coloca ao mesmo tempo numa nobre relação de troca, como receptores e doadores de nossos corações, reciprocamente. Isso, por si só já nos traria um sentimento de verdadeiro privilégio. Em tal momento terapêutico, acima de tudo singular, na relação da intimidade do cuidado, a pessoa se revela ao expor suas dificuldades, muitas vezes as mais recônditas, mostra seus limites, suas vulnerabilidades, podendo também ser motivada para trilhar seu processo resiliente. De fato, é sublime estarmos nesse lugar de escuta e acolhimento! Agradeço sempre essa oportunidade quando ela me surge!
Relembro aqui o que eu escrevi sobre o tema no meu livro Autotransformação e Cura:
Durante a minha caminhada como médica e terapeuta busquei permanentemente formas de me aproximar da alma de meus pacientes, desenvolver contatos mais profundos e verdadeiros, escutando não só os sintomas que os afligem, mas também suas histórias de vida pessoal, transgeracional, seus projetos e sonhos. Claro que nem sempre consegui essa sintonia na sua totalidade, e esses fracassos me impulsionaram na busca de encontrar abordagens mais eficientes na direção de um contato que facilitasse minha acuidade como cuidador e aí alcançar o objetivo precípuo da relação terapêutica, que é o contato próximo e acolhedor. Com esse intuito desenvolvi os princípios da Terapia Transessencial.
Gostaria também de compartilhar com vocês a diversidade de sentimentos que cada pessoa atendida desperta em mim. Na sua grande maioria algo acontece em um nivel que eu chamaria de extra-emocional, como se eu saisse do contato com minha base material de vida em direção a uma troca metafísica e ao mesmo tempo uma sintonia de coração. Acredito que assim podemos desenvolver não só nossa capacidade resiliente, mas também nossa empatia e compaixão. De tal forma, treinamos nosso cérebro e abrimos nosso coração, nos abrindo para sentimentos e emoções que vão se tornando mais sutis e profundos, permitindo uma comunicação mais vibrante e verdadeira com o outro.
Durante muitos anos eu senti a necessidade de dispor de uma abordagem que me permitisse compreender o fenômeno da consciência humana como transcendente e, por isso, integrando níveis tanto corporais como emocionais, conscienciais e espirituais, facilitando, dessa forma, a compreensão e a superação do sofrimento físico, psíquico e existencial daqueles que nos procuram. Assim, a TTE integra em si diversas disciplinas, harmonizando as ações dos vários profissionais envolvidos no tratamento da pessoa em sofrimento, além de expandir seu campo de atuação. Essa busca tem me permitido compreender as fronteiras entre os campos do conhecimento, quer seja científico, filosófico, artístico e espiritual, e principalmente, atuar dentro de uma perspectiva que atravesse e integre tais fronteiras.
Essa busca pernanente explica um pouco minha trajetória que começou no campo do estudo da neurologia, passando pela psiquiatria, psicoterapia, relações culturais e comunitárias. Confesso que de tudo que vi e aprendi, o mais importante, o que mais me toca o coração é o alcance da disponibilidade em acolher verdadeiramente aquela pessoa que está na minha frente, sem preconceitos ou restrições de nenhuma natureza.
A TTE propõe que a relação terapeuta-paciente vá além dos protocolos, para incluir o contato, melhor dizendo promover uma conexão profunda, entre os seres humanos envolvidos na terapia. Posso correlacionar com a relação dialógica Eu-Tu verdadeira, nos termos propostos por Martin Buber, que existe por trás dos personagens; contato entre as essências por trás das aparências. Entretanto, como profissionais de saúde e do cuidado somos geralmente preparados para nos abstermos de demonstrar emoções diante do sofrimento de nossos pacientes.
Como compreender esta postura de bloqueio de nossos sentimentos e emoções dentro de uma prática terapêutica?
Trago aqui para vocês coisas que tenho acompanhado nos estudiosos. Segundo alguns, essa postura distante ou até indiferente, pode ser vista por dois ângulos diferentes. De um lado, o terapeuta pode estar se protegendo da possibilidade de um trauma vicariante, ou seja, a tentativa de não absorver ou trazer para si o sofrimento do paciente. Do outro, poderia ser visto como a imposição de uma espécie de impermeabilidade afetiva, uma armadura instalada para lidar com o sofrimento e com a morte. Esse comportamento pode gerar um distanciamento, uma impessoalidade que pode beirar à insensibilidade.
Quando eu trabalhava como neurologista na emergência do Hospital de Base, aqui no DF, assisti algumas situações de indiferença ou conduta ríspida por parte de médicos ou da enfermagem, como se o paciente fosse culpado por estar trazendo aquela dificuldade para o hospital. Essa forma pouco polida acontecia mais evidente com os pacientes que chegavam no PS com história de tentativa de suicídio. Me doía muito aquelas pessoas serem maltratados pela equipe quando de fato precisavam de cuidado, quer seja para fazer procedimentos de desintoxicação ou acolhimento psicossocial necessário.
Quando nos sensibilizamos diante do sofrimento, pode acontecer de sermos tocados de uma forma tão profunda que não conseguimos disfarçar nossas emoções. Esse impasse nos faz lembrar a situação constrangedora que nós, médicos, enfrentamos quando lágrimas brotam dos nossos olhos ao sentir compaixão por alguém em sofrimento.
Vocês já sentiram ou já perceberam esse comportamento em você ou em colegas do cuidado?
Venho me perguntando como lidar com a dor do outro que as vezes me assalta de forma insuportável? Primeiro, eu venho refletindo que ao contrário do que é comumente pensado, sentir a dor do outro e ser capaz de sensibilizar-se com ela, é um ato de coragem humana. Diferentemente, bloquear nossos sentimentos é sinal de medo das próprias fraquezas e do julgamento do meio. Posso confessar pra voces que prá mim nunca foi fácil trabalhar com o sofrimento humano. Prá mim não tem sido fácil romper com os dogmas impostos pela prática da medicina.
Me lembro muito claramente quando no quinto ano de medicina, eu estagiava no maior pronto socorro da cidade de Recife. Na verdade eu acompanhava o plantão de um sextanista de medicina. Passamos a noite inteira cuidando de um rapaz, ainda jovem, vitima de acidente automobilistico. Ao amanhecer conseguimos equilibrar seus sinais vitais e deixamos o plantão com o paciente fora de perigo. No caminho para casa eu tive um sentimento muito forte, quase uma epifania de ter vivido aquela experiência tão profunda: salvar uma vida humana. Pra mim aquela sensação foi realmente inesquecível, que até hoje permanece em minha alma como o inicio de uma trajetória que eu percebia que estava só começando.
Compreendendo que as equipes de saúde e do cuidado vivenciam situações limites e de tal intensidade suprahumana, eu ressalto a importância de cuidar de quem cuida, proporcionando o conhecimento das próprias feridas e identificando as pérolas que foram forjadas a partir dos sofrimentos vividos na caminhada pessoal de cada um.
Acredito que, em algum momento, o médico ou profissional do cuidado, possa se emocionar e até chorar, sem perder sua competência e clareza de raciocínio. Falando sobre esse tema me vem a passagem quando num atendimento de um paciente psicótico e sua familia, esse foi acusado de não trabalhar e nem se esforçar para desenvolver qualquer atividade produtiva. Quando eu pedi para ficar sozinha com o paciente, e ao fechar a porta na saída dos familiares, me veio uma profunda dor emocional, um choro espontâneo, um sentimento de injustiça por saber que aquele paciente ainda não tinha condições de responder as expectativas do pai. Quando sentei de volta na mesa, em frente ao paciente, ele pegou na minha mão, olhando nos meus olhos e falou “Henriqueta o problema é meu… “eu respondi “fulano mas isso me doi muito!” Daquele dia em diante o paciente compreendeu que estávamos ligados inexoravelmente na vontade de superar a sua doença e as restrições que ela provocava. Pra mim foi revelador; o quanto aquele autêntico encontro de almas favoreceu a caminhada terapêutica daquele ser tão perdido em suas elocubrações delirantes e tão lúcido na sua humanidade.
Enfim, gente querida que me acompanha aqui, no campo de acolher o outro não temos regras absolutas e nem fórmulas, apesar de contarmos com os pilares fundamentais que nos guiam nas nossas ações como médicos ou terapeutas. Penso que em uma relação terapêutica, o encontro Eu-Tu nos cenários de cuidado, ocorrem mistérios que vão além do saber teórico e da experiência prática. Que sejamos abertos aos mistérios que permeiam a existência humana! “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana” Carl G. Jung.
E finalizando, eu diria apenas uma coisinha a mais: se você tem medo de errar expondo suas emoções a quem está sendo cuidado, pode ter certeza que a postura contrária, ou seja, de frieza e alheamento diante da dor do outro, sempre será o pior dos mundos. Tenho como certo que as pessoas reconhecem a sensibilidade do profissional do cuidado como um fato sublime da vida.