O homem não pode suportar uma vida sem significado. (C. G. Jung)
Na minha prática médica tem sido sempre um desafio lidar com o sofrimento de uma pessoa deprimida sem sentir de perto a angústia que avassala aquele ser que está à minha frente. Sinto a dor expressada pelo outro como parte de mim mesma, de minha vida, de minha história existencial, além de saber, profundamente, que aquele sofrimento faz parte do mundo humano ao qual pertenço.
Read more: O sentido da vida e a visão de mundo na depressãoA relação humana, que se apossa da relação terapêutica, carreia, ao mesmo tempo, a tristeza, advinda da empatia terapeuta-paciente, e, como contraponto, o brilho existencial que esse encontro pode proporcionar. Dessa maneira, é sempre gratificante adotar uma relação médico-paciente aos moldes da relação EU-TU, sugerida por Martin Buber[1] Os ensinamentos desse filósofo têm me ajudado quando me referencio nos princípios que considera o outro como um ser de natureza noética[2], sem considerá-lo, simplesmente, em uma relação objetal, a qual foi denominada por ele de relação EU-ISSO.
Considero a missão que me foi concedida, de acolher as pessoas no seu sofrimento psíquico, de uma beleza inenarrável, que mobiliza o mais profundo do meu ser, estimulando meu crescimento como pessoa e como profissional. Ao mesmo tempo em que essa missão me fascina, sinto em alguns momentos uma exaustão das minhas forças, semelhante à de uma doação de sangue, obrigando-me a buscar na reflexão filosófica ou na meditação o fortalecimento necessário para o retorno à homeostase psicoemocional.
Sinto ser um enorme desafio doar-me e, ao mesmo tempo, catalisar o processo de superação do outro, mantendo-me plena e equilibrada energeticamente para a necessária qualidade de vida e continuidade da minha missão.
Por conta desse dilema, vejo ser imprescindível que os profissionais que buscam aplacar a dor do outro tenham mecanismos intrínsecos para nutrir-se e reconectar-se ao Self ou consciência espiritual. Um dos mecanismos de nutrição é ter consciência que ambos os envolvidos estão se retroalimentando pelo contato de suas naturezas transcendentes. Na relação terapêutica, o que acontece entre o profissional e o paciente não envolve apenas o conhecimento técnico, mas principalmente a interação do amor transcendente, o aprendizado de ambos e a alimentação existencial mútua.
No momento presente da humanidade, nada é mais importante do que refletirmos sobre os valores e as virtudes emanados do Bem, do Bom, do Belo e do Justo. Esses princípios, preconizados por Platão[3], estão cada vez mais esquecidos na sociedade contemporânea, cuja tendência materialista avassala os sentimentos mais nobres do ser humano – como a generosidade e a compaixão– substituindo-os pela vaidade, pelo egoísmo, pela ganância, pelo consumismo e pela competição.
Nessa teia competitiva em que vivemos, urge que se preparem os profissionais das várias áreas, sobretudo da educação, da saúde, da justiça, das artes e das áreas sociais, para se tornarem agentes multiplicadores dos valores e das virtudes inerentes à essência luminosa do ser humano. Acreditamos e defendemos que todos, sem exceção, possuem o potencial evolutivo para o despertar dessa responsabilidade. Aliás, muitos terapeutas ou educadores já têm essa missão como cerne de sua atividade profissional. É uma missão que deveríamos empreender, cada um na sua área, ampliando qualitativamente nosso espectro de ação, quer seja por meio do trabalho remunerado ou mesmo voluntário, ou pela nossa postura e exemplos na convivência com os demais. Esse chamado é para todos e, em especial, para as pessoas que se sentem interperladas pela dor e carência do outro, que são esteios para o trabalho humanitário, como profissionais de saúde, professores, comunicadores, artistas, escritores e tantos outros que se sensibilizam com a subjetividade e a alma humana.
Esse chamado inclui especialmente as pessoas formadoras de opinião, que são referências para a humanidade. Essas têm a tarefa precípua de ajudar no crescimento ético e existencial; quanto maior o potencial intelectual e a bagagem espiritual, mais responsável se torna a pessoa diante dos grupos humanos.
Na ótica da Terapia Transessencial[4], a compreensão da depressão está além do âmbito das causas ligadas aos fatores físico-químicos e emocionais. Ressalto, então, aquelas causas relacionadas com as questões fundamentais do ser humano, como o sentido da existência, contato com o sagrado, a visão da totalidade e a capacidade de ser feliz no sentido metafísico, que na visão transessencial estão diretamente vinculadas ao campo consciencial. Abordar o tema do sentido da vida merece um espaço privilegiado na compreensão da depressão, porque entre os principais sintomas desse transtorno está o vazio existencial e a falta de perspectiva. De variadas formas, as pessoas com depressão descrevem não experimentar o propósito de vida e algumas vezes queixam-se de vontade de morrer, desistência, desesperança e desilusão. Segundo elas, “a angústia do viver é muito insuportável”.
A falta de consciência do sentido da vida impera no campo existencial da grande maioria das pessoas que enfrentam a depressão. Despertar pela manhã sem sentido para acordar, sem ter razão para viver aquele dia ou todos os demais, talvez seja um dos maiores sofrimentos enfrentados pela pessoa depressiva. O embate entre a falta de desejo de existir numa existência sem sentido, e o clamor pela vida, exalado do instinto de sobrevivência e do sentimento da missão pessoal, talvez seja um dos maiores dilemas vividos nas doenças psíquicas, sobretudo naquelas com rebaixamento do humor, angústia, tristeza e desânimo.
O que escutamos e sentimos das pessoas que nos procuram com diagnóstico de depressão é, preponderantemente, o vazio existencial, entre tantos outros sintomas, como a falta de ânimo, desespero emocional, angústia, ansiedade, insônia e sintomas psicossomáticos. O desejo de morte, comumente encontrado nessas pessoas, manifesta-se mediante a sensação de contato com o nada, com o vazio completo e absoluto. As pessoas descrevem muitas vezes “que cansaram de sofrer e que a morte seria uma opção para cessar o sofrimento”. Geralmente, o sentimento de angústia vinculado ao quadro depressivo é a representação do vazio existencial, da dor de viver sem sentido.
Alicia Lisondo (2004)[5] ressalta, em seu artigo “Na cultura do vazio, patologias do vazio”, o desafio que a era do vazio tem trazido para a psicanálise. Ela explica que “a era pós-moderna que se identifica como era do vazio e da imagem, caracteriza-se pelo individualismo hedonista e narcísico, pela apatia, pela sedução generalizada, pela legitimação de todos os modos de vida, pela coexistência de contrários, pela inversão dos ideais, em que a verdade é soterrada”. Nesse campo minado da pós-modernidade, a depressão tem eclodido de maneira descontrolada, muitas vezes forjada pela falta de propósito e pelo vazio de uma época tão contraditória.
Em muitas pessoas deprimidas, a angústia se forjou a partir das vivências traumáticas, da carência afetiva e das sucessivas frustrações. Na prática psiquiátrica e na medicina em geral, deparamos cotidianamente com as angústias humanas e com a dor escancarada pelas enfermidades. A angústia e o vazio acompanham as pessoas que sofreram traumas psicológicos na infância ou em algum período de vida e que depois, mesmo adultas, sentem que a vida não tem sentido, que tanto faz viver ou morrer, que, aliás, “morrer seria um alívio”, como exprimem algumas pessoas avassaladas pela angústia depressiva.
Adentrando um pouco mais no sofrimento causado pela vivência traumática, entendo que os alicerces de sua recuperação encontram-se no âmago de cada ser, em sua essência, sob a forma de Amor, Vontade e Inteligência[6]. Mas essa chama construtiva ainda reside despercebida em grande parte do ser humano. Essa potencialidade, com que todos nós somos agraciados ao nascer, é escamoteada pelo contato excessivo com o materialismo preponderante na sociedade, o que funciona como um reforço da angústia individual: procura-se nas posses materiais o sentido da vida que não se é capaz de encontrar no mundo existencial. Procura-se fora o que não se encontra dentro; dedica-se todo o potencial do ser ao mundo material, quando não se é sensível ao apelo dos princípios metafísicos da existência.
Concepções filosóficas e o sentido da vida
Traduzindo em termos de Terapia Transessencial, a busca limitada às conquistas dos campos físico-biológico, vibracional, emocional e mental, que são campos mais ligados à personalidade, torna-se vazia se comparada ao aprimoramento das sutilezas dos campos Consciencial e Selfico-espiritual. Quando conseguimos acionar um fluxo de investimento pessoal que vai mobilizando os campos mais sutis, aqueles ligados à condição luminosa do ser – consciencial e sélfico-espiritual –, estaremos construindo o sentido existencial profundo da vida.
Quem tem um porquê de viver, quase sempre encontrará o como. (Nietzsche)
Que aproveitemos nossa passagem pelo mundo para distribuir sopros de nossa alma em forma de amor. (Carlos Eduardo Tosta)
O sentido da vida é um dos temas centrais da filosofia, povoando as reflexões humanas de todas as épocas e culturas. O ser humano vive em busca de aplacar o grande desejo de conhecer a si mesmo e as coisas a sua volta. Eis que, no universo humano, desde sempre reverberam as seculares questões: quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Qual o sentido da vida?
Na situação de depressão, a perda do sentido da vida provavelmente foi deflagrada pelas frustrações e traumas emocionais. Dentro do entendimento do sentido da vida como pilar central para a vitalidade humana, é fundamental superar a frustração vivida, ressignificar a história de vida, buscando valores mais sublimes. Normalmente, essa é uma revolução pessoal e existencial muito difícil de se fazer: sair da referência do egoísmo para desenvolver a compaixão e o altruísmo; sair do mundo das ilusões para um caminho a partir da consciência de si e do outro. A superação da perda significa reformular o próprio significado de vida, assumir a responsabilidade que a vida enseja. Podemos, então, perguntar àqueles que vivenciam o sofrimento: o que não foi destruído com as perdas? Quais os aprendizados que o sofrimento proporcionou? Quais os novos valores incorporados a partir da experiência vivida ? Que potencialidades e recursos a pessoa pode identificar por meio das vivências mesmo tendo sido de dores e sofrimento?
Mesmo com o aumento da sobrevida da população e a conquista de um estado físico-biológico mais saudável, algumas pessoas decaem psiquicamente porque obedecem, de certa forma, às influências culturais de não ter mais uma atitude proativa na vida. Essas pessoas sentem-se inúteis e não empreendem nenhum projeto novo. O estado de desistência se agrava com a aposentadoria e com a saída dos filhos de casa (síndrome do ninho vazio). Ao contrário disso, acredito que esse momento deveria representar uma mudança de fase, saindo das preocupações pela subsistência, tão necessária nas primeiras décadas da vida, para vivenciar a doação, a transmissão do conhecimento acumulado e, sobretudo, construir uma base de vida calcada na transcendência e nos valores mais sublimes, como a compaixão, a generosidade, a conexão com o Sagrado e a evolução pessoal e da humanidade.
[1] BUBER, M. Eu-Tu. São Paulo: Centauro. 2006.
[2] Noética, do grego nous significa mente, é uma disciplina que estuda os fenômenos subjetivos da consciência, da mente, do espírito e da vida a partir do ponto de vista da ciência. Como conceito filosófico em linhas gerais define a dimensão espiritual do homem.
[3] Na filosofia de Platão os conceitos do Bem, Belo, Bom e Justo são vistos como uma síntese de todo seu pensamento e proposta filosófica.
[4] Lembrando que a Terapia Transessencial preconiza que a essência humana está entendida didaticamente em seis campos: físico-biológico, etérico-vibracional, emocional, mental, consciencial e selfico-espiritual.
[5] LISONDO, A. N. Na cultura do vazio, patologias do vazio. Revista Brasileira de Psicanálise. V. 38 n. 2 p. 335-358. 2004.
[6] Nesse contexto entendemos Amor, Vontade e Inteligência como sentimentos maiores ligados ao Self, a essência profunda de cada pessoa.